A denúncia do Ministério Público de Bela Vista do Paraíso contra o ex-prefeito Ângelo Roberto Bertoncini e outras oito pessoas ligadas à sua administração mostra como funcionava o suposto esquema de desvio de combustíveis, que também foi investigado, à época, em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara Municipal.

“Ilegal”. “Imoral”. ‘Descaso com os bens públicos’. Estas são algumas das formas usadas na denúncia para caracterizar os procedimentos adotados pelos nove acusados. Segundo o Ministério Público (MP), o ex-prefeito Ângelo Roberto Bertoncini, servidores municipais e outras pessoas que prestavam serviço para a Prefeitura Municipal de Bela Vista do Paraíso tiveram participação no esquema de desvio de combustíveis para uso particular, pagos com dinheiro público. (Veja abaixo quem são os acusados).

Para burlar o sistema Controle de Frotas, do Tribunal de Contas do Paraná (TCE-PR), que exigia a identificação do veículo que estava usando o combustível, os envolvidos informavam, nas notas, placas de veículos que estavam abandonados, sem condição de rodagem, na Garagem Municipal. (Veja abaixo quanto cada veículo gastou).

O MP calculou que os desvios identificados geraram gasto de R$ 89.786,07. Com a correção monetária e juros simples de 1% ao mês, o valor atualizado chegaria a R$ 257.450,49 em dezembro de 2018, quando foi feita a denúncia.

Para o MP, a grande quantidade de provas mostra que os denunciados “violaram o dever de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, princípios cardeais da Administração Pública”.

“Não se pode conceber como moral e ética a conduta de quem utiliza de cargo público para praticar ilegalidades”, diz o texto.

O documento assinado pela Promotora de Justiça Ana Maria de Oliveira Santos, que se aposentou em 2020, pedia que as nove pessoas fossem condenadas por improbidade administrativa, com a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil, proibição de contratar com o poder público, pagamento das custas processuais e a devolução dos mais de R$ 257 mil.

Porém, a ação do MP veio tarde. O caso foi investigado em 2012, na CPI, e a ação deveria ter sido apresentada na Justiça até 2017. No entanto, depois de receber os documentos da CPI, o MP prorrogou o prazo do Inquérito Civil por pelo menos cinco vezes para continuar a investigação.

A Ação Civil Pública só foi proposta em 18 de dezembro de 2018, um ano após o prazo de prescrição, conforme relatou o juiz substituto Lincoln Rafael Horácio, na decisão que aceitou parcialmente a denúncia. Isso aconteceu na quinta-feira, 25 de janeiro de 2021, ou seja, dois anos após a denúncia. Nesse período, os acusados foram notificados e puderam apresentar a defesa preliminar.

O magistrado reconheceu a prescrição da aplicação das sanções previstas no art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa, mas, com base em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), entendeu que a reparação de danos ao erário não prescreve.

Na prática, os acusados se livraram de algumas consequências previstas na lei, mas poderão ter que devolver o dinheiro que teria sido desviado dos cofres públicos, caso sejam condenados.

Os personagens
e seus papéis

Veja quem são as nove pessoas denunciadas pelo MP, qual o cargo/função que ocupavam no período e qual teria sido o seu papel no esquema, segundo o documento.

Teria solicitado por diversas vezes que requisições de abastecimento fossem assinadas pelos funcionários do setor de compras, como forma de pagamento a terceiros por serviços prestados.
Teria assinado as requisições para o abastecimento, com a indicação das placas dos veículos do município.
Teria assinado as requisições para o abastecimento, com a indicação das placas dos veículos do município.
Teria solicitado e autorizado que requisições de abastecimento fossem assinadas pelos funcionários do setor de compras, como forma de pagamento a terceiros por serviços prestados.
Não teria repassado informações sobre os veículos inutilizados que deveriam ser baixados no sistema, possibilitando que eles continuassem constando na relação de veículos em uso.
Não teria dado baixa nos veículos que estavam sem deteriorados, possibilitando que eles continuassem constando na relação de veículos em uso.
Teve seu veículo particular abastecido com combustível pago pelos contribuintes.
Teve seu veículo particular abastecido com combustível pago pelos contribuintes.
Teve seu veículo particular abastecido com combustível pago pelos contribuintes.

Ouvido pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), em 2012, Sebastião Bulhões afirmou que, inúmeras vezes, superiores lhe pediram que assinasse requisições de abastecimento usando as placas dos veículos deteriorados. Ele contou que, dentre os veículos particulares que recebiam os combustíveis estavam os de “Mari”, que realizava assistência na área de informática e, segundo MP, não foi identificada; de Paulo Rocha; de Cláudio Rogério Malacrida; e de Gelson Luiz Gonçalves da Rocha, que não foi denunciado porque faleceu.

Sebastião Bulhões também informou que Bertoncini e Sidney do Nascimento lhe instruíram para que liberasse requisições de abastecimento como pagamento pelo corte de árvores feito por particulares. Eram pagos 50 litros de diesel por árvore cortada.

Sebastião e Sandra teriam assinado as liberações. Paulo, Cláudio Rogério e Luis Carlos teriam recebido os combustíveis. Bertoncini e Sidney também teriam dados ordens para que o abastecimento ocorresse.

Por sua vez, Ademir teria repassado à Administração as informações sobre os veículos inutilizados, enquanto Sérgio era o responsável por atualizar as informações cadastrais sobre os veículos e dar baixa naqueles sem condição de rodagem, para impedir o uso indevido, o que não aconteceu.

Para o MP, todos os nove envolvidos “contribuíram com suas ações para a destinação ilegal de recursos mediante o abastecimento irregular de veículos não pertencentes à frota municipal”.

A denúncia, porém, não afirma que os servidores e o prefeito abasteciam os próprios veículos, mas que usavam o combustível como pagamento de serviços prestados ou para abastecer veículos de profissionais que vinham de outras cidades para prestar serviços no município. A prática, no entanto, seria ilegal e “sem qualquer base contratual que autorizasse ou justificasse os abastecimentos”, segundo o MP.

O que dizem
os acusados

O Telégrafo entrou em contato com a defesa dos acusados. Veja o que cada um declarou:

ÂNGELO BERTONCINI:

Seu advogado, Diego Rampasso, declarou que o ex-prefeito não praticou nenhum dos atos denunciados, que isso ficará provado na justiça e que tudo não passou de uma “briga política”.

SEBASTIÃO BULHÕES:

Foi notificado pela Justiça, mas não constituiu advogado no processo. Procurado pelo Telégrafo, preferiu não se manifestar.

SANDRA PILEGI PINHEIRO:

Seu advogado, Diego Rampasso, declarou que ela não praticou nenhum dos atos denunciados, que isso ficará provado na justiça e que tudo não passou de uma “briga política”.

SIDNEY DO NASCIMENTO:

O Telégrafo enviou e-mail para sua advogada, Patrícia Campos Baggio, e enviou mensagens por Facebook, mas não obteve resposta até o fechamento da matéria. O espaço continua aberto para a defesa.

ADEMIR GEORGINI:

O Telégrafo enviou e-mail para seu advogado, Maurício de Oliveira Carneiro, e enviou mensagens por Whatsapp, mas não obteve resposta até o fechamento da matéria. O espaço continua aberto para a defesa.

SÉRGIO DA SILVA:

Foi notificado pela Justiça, mas não constituiu advogado no processo. Procurado, preferiu não se manifestar.

LUIS CARLOS SILVA:

O Telégrafo enviou e-mail para sua advogada, Patrícia Campos Baggio, mas não obteve resposta até o fechamento da matéria. O espaço continua aberto para a defesa.

CLAUDIO MALACRIDA:

Representa a si mesmo no processo. O Telégrafo lhe enviou e-mail, mas não obteve resposta até o fechamento da matéria. O espaço continua aberto para a defesa.

PAULO ROCHA:

O Telégrafo enviou e-mail e mensagens de Whatsapp para seu advogado, Wilson Carlos Damião, mas não obteve resposta até o fechamento da matéria. O espaço continua aberto para a defesa.

Os veículos
'laranjas'

Durante a CPI, Ademir Georgini, responsável pela Garagem Municipal, reconheceu pelas fotos os veículos que estavam sem condição de rodagem. Com essa informação, a CPI requisitou ao TCE os relatórios dos gastos com combustível de cada um desses veículos.

Foram pedidos ao tribunal os relatórios de gastos desde 2009, mas essa informação só passou a ser coletada em 2011. Foi possível perceber que, nesse ano e em 2012, houve grande consumo de combustível associado a esses veículos que estavam em desuso.

Os gastos referidos nas imagens acima ocorreram em 2011 e até março de 2012. As imagens são do arquivo da CPI.

A CPI dos
Combustíveis

Segundo o MP, tudo começou com a denúncia de uma servidora municipal, que testemunhou o momento em que um contador da Prefeitura Municipal à época abastecia o seu veículo particular e apresentava, no pagamento, uma autorização da prefeitura.

A funcionária teria questionado Sandra Pilegi Pinheiro, que informou que o procedimento era normal. A informação chegou à Câmara Municipal, que instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar possíveis irregularidades.

A CPI foi instaurada em 18 de outubro de 2012 pela Portaria nº 12/2012. Os membros da comissão foram o vereadores Jane Mara Zanon, como presidente da comissão, Ricardo Krei Bandolin, como relator, e Edson Vieira Brene, como membro.

No calhamaço de documentos juntados na CPI estão boletins de ocorrência, cópias das requisições de abastecimento, depoimentos de testemunhas, arquivos da gestão municipal e as fotos dos veículos deteriorados, exibidas acima. O conjunto de evidências indicou a materialidade do esquema e embasou a investigação do MP.

O Tribunal
de Contas

Questionada pela reportagem, a assessoria do Tribunal de Contas do Paraná (TCE-PR) informou que não há nenhum processo no tribunal envolvendo esse caso. Porém, ainda é possível apresentar denúncia ou representação para instauração dos respectivos processos.

“Além disso, a irregularidade pode ser apurada na Prestação de Contas Anual do município referente ao exercício no qual ela ocorreu”, escreveu a assessoria.

Um eventual julgamento do caso no TCE-PR pode resultar em sanções de multa, devolução, declaração de inidoneidade, proibição de contratação com o poder público ou inscrição no cadastro de responsáveis por contas irregulares.

Créditos

reportagem, projeto gráfico e diagramação
FILIPE MUNIZ

imagens
PIXABAY; FREEPIK; COHAPAR